A Casa dos Sonhos


Foto/Arte: Nicki Crock

Talvez você já tenha ouvido falar por aí, em algum canto obscuro, ou talvez aqui mesmo, nesse blog capenga e com o prazo de validade vencido. Tentarei escrever e descrever esse projeto improvisado e que durou mais de quatro anos. Isso, graças ao meu amigo e parceiro das ruas, o mítico Caldabranca, que me pediu para fazer uma crônica somente sobre isso. Isso? Isso o quê? Talvez você esteja se perguntando nesse momento. Explico. Nesse blog escrevi por um tempo as tais “crônicas de nácar”, batizadas com esse nome engraçadinho para contar algumas das histórias envolvendo essa casa, ou projeto, como falei no início. Projeto porque se trata de uma espécie de projeto cultural, envolvendo artistas desacreditados, e sim, uma casa, para abrigar esses malucos todos, muitos vindos de longe, de países como Uruguai e Argentina, por exemplo. 

Comecei essa história em um bairro de Curitiba, chamado Pilarzinho. Ali, dividimos as contas e alugamos uma casa que, apesar do estilo familiar, se tornou tudo menos algo que vemos em qualquer família por aí. Isso porque ali moraram alguns artistas de diversas áreas: música, cinema, poesia e circo, para ficar nos exemplos mais comuns. Fizemos algumas festas como você já deve imaginar, sempre com alguma banda tocando ao vivo e para uma plateia heterogênea. Durante esses eventos, vendíamos comida barata e algumas bebidas. Além dos shows, normalmente realizados em um palco improvisado do lado de fora da casa, rolavam performances, exposições e apresentações espontâneas de caras como o próprio Caldabranca. Nesse período boa parte dos artistas da casa trabalhavam na rua, em semáforos ou na rua mesmo, tocando algum instrumento. E talvez por isso, a energia hippie predominava, e talvez outro exemplo disso era o famoso “recicle” que acontecia, onde alguns moradores iam até alguma feira e conseguiam alimentos que seriam descartados, mas que naquela casa se transformavam em um lindo e apetitoso banquete. Era comum hospedarmos viajantes de várias partes e logo esses seres se incorporavam a atmosfera da casa, aprendendo a compartilhar praticamente tudo. Ficamos um ano e meio nessa residência e quando saímos os vizinhos agradeceram, já que muitos deles não compreendiam o que se passava ali, ou apenas reprovavam aquele estilo de vida peculiar. 

Resolvi seguir com o projeto e dessa vez conseguimos uma casa maior e muito bem localizada, próxima ao centro, no bairro Mercês. Imaginávamos as dificuldades que iríamos encontrar e sabíamos que precisávamos trabalhar duro para conseguir pagar todas as contas e tornar esse sonho de verão, em algo sustentável. Já no primeiro mês, organizamos um quarto para servir de hospedagem: construímos um beliche que faltava e definimos alguém para cuidar apenas dessa parte. No primeiro dia, hospedamos um uruguaio e um argentino. Um fazia umas rosquinhas maravilhosas e as vendia na rua por apenas um real a unidade. O outro tocava escaleta no semáforo e assim, ambos conseguiam pagar a diária, de apenas quinze reais. Após um tempo, descobri que o senhor uruguaio já havia comandado grandes cozinhas e assim, o coloquei como responsável dessa parte. Nessa época, todos os dias ele fazia as refeições para todos que estivessem na casa, algo extremamente importante e fundamental para o bom convívio de todos. Nas sextas, fazíamos eventos multiculturais, onde normalmente alguma banda de jazz tocava na sala de ensaio ao lado do terraço. Chegamos a receber mais de oitenta pessoas em uma noite, algumas estrangeiras, e desse modo, conseguíamos garantir a comida para o restante da semana. Claro que festas desse tipo, após as 22 horas e em plena capital do conservadorismo, trouxeram alguns problemas. A polícia precisou intervir em algumas ocasiões e assim, decidimos diminuir a periodicidade dos eventos, e tentamos começar mais cedo, para evitar maiores transtornos. O fluxo de pessoas diminuiu, mas a qualidade dos eventos continuava boa. Mas abrigar artistas “incompreendidos” não é fácil, uma vez que cada um tem seus problemas pessoais e quando falamos em artistas, fica difícil imaginar alguém organizado. Por isso, alguns deles acabavam não cumprindo com o trato financeiro, mas como eu sabia da importância de dar continuidade no projeto, eu dava um jeito de pagar as contas, na promessa que depois eles me pagassem, algo que muitas vezes, como você também já ter imaginado, não ocorria. Na casa, além da sala de ensaio e da hospedagem mencionadas, também havia um atelier de escultura, onde um grande parceiro produzia suas peças, e um “lounge”, onde plantas comestíveis eram cultivadas. Na sala principal, funcionava um tipo de agência, onde eram feitas as artes digitais e um programador experiente criava nosso web site. A primeira impressão das pessoas que passavam por lá era sempre muito positiva, e muitos diziam nunca terem visto algo do gênero, pelo menos em Curitiba. Lá você se sentia à vontade e com um sentido de conexão com o restante do mundo, algo que também costuma ser visto em hostels descolados por aí. Apesar das dificuldades, ficamos mais de dois anos nesse espaço, e nesse tempo, criamos um programa de rádio da casa e que ainda continua no ar, pela Rádio Cultura de Curitiba, além de uma porção de outros projetos como um clube de francês, um coral, yoga, capoeira e bandas, muitas delas formadas através do encontro de músicos que passavam pela casa. Acima de tudo, a casa era um ponto de encontro. Não importava sua posição política, suas desavenças no passado ou suas limitações, o bacana era perceber que você não estava sozinho, e que juntos, era possível criar ideias mais ambiciosas e criativas. Mas o fim desse ciclo chegou, e não pense que desisti disso tudo, ou pior, resolvi “cair na real”. Realmente criar e manter um projeto desses nesse Brasil apocalíptico é algo quase impossível, e por isso mesmo, ainda penso em seguir com essa ideia, porém em outra cidade ou país. Aprendi muito nesse tempo e com cada um que participou desse pequeno grande sonho, e pretendo carregar essas experiências seja lá onde eu for parar. Se você é um desses que fez parte dessa maluquice toda, te mando um grande abraço e te digo: obrigado!