Jornalista, escritor e folclorista foi o grande responsável pela ascensão da música caipira no Brasil
A pequena cidade de Tietê no interior de São Paulo era cortada pelo rio de mesmo nome, mas poderia ser o rio Piracicaba, em cidade também homônima, ali perto uns 60 quilômetros, eternizada em uma canção caipira.
Tietê fica no extremo norte do que hoje é a região metropolitana de Sorocaba. Mas em julho de 1884, quando veio à luz Cornélio Pires, era uma localidade um tanto isolada, no auge da cultura cafeeira.
O pequeno Cornélio Pires nasceu em família pobre e numerosa da zona rural. Desde cedo trabalhou em diversos ofícios, desde a tipografia de uma gráfica até o comércio. Apesar de trabalhar, sempre frequentou a escola com afinco, e em 1901 vai à capital do estado com o intuito de ingressar na faculdade de Farmácia. Acaba reprovado. Inicia então pequenas atividades nas redações de alguns jornais, como O Comércio de São Paulo e A Cidade de Santos (1905). Mais tarde, trabalha em O Movimento (1907).
As rodas boêmias da capital acabam sendo seu habitat naquele começo de século, no qual a cidade se industrializava. O jovem Cornélio se destacava como um notório contador de histórias, especialmente as engraçadas — os chamados “causos” — e anedotas, o que lhe conferiu uma certa fama de artista. Algo como o que chamamos hoje stand up comedy.
Não tardou para ele remeter aos circos que assistiu em sua infância, onde também passou a se apresentar a partir de 1910, E foi ali a grande guinada e o começo do legado de Cornélio Pires para a cultura brasileira. De importância que não dá para se medir, como veremos.
A primeira: Cornélio, para fazer humor e contar os causos no circo, começa a caracterizar pela primeira vez um tipo com o qual também topara muito em seus tempos de interior: o caipira. A camisa xadrez, o chapéu de palha, a botina zebu e a calça erguida acima do umbigo, mais o cigarrinho de palha e a barbicha rala sobre a pele meio indígena. Essa indumentária certamente nunca existiu de verdade. Foi montada alegoricamente por Cornélio. Mas certamente era formada por elementos que ele conheceu na roça. É certo também que não teríamos a imagem do caipira como conhecemos não fosse Cornélio Pires. Monteiro Lobato utilizou do estereótipo “montado” por Cornélio para caracterizar seu Jeca Tatu, alguns anos seguintes, ou pela mesma época. Até hoje o utilizamos em festas juninas.
A segunda: a música. A música caipira não existia como tal. Não era um gênero. Era parte do folclore, orgânico. Eram cantigas religiosas que tiveram sua origem pelo uso da viola, instrumento de cordas trazido pelos colonizadores portugueses. As cantigas eram utilizadas na catequização de indígenas, e principalmente nas celebrações religiosas. A música caipira veio das festas de padroeiro, do mantra da reza do rosário, das folias de reis, do Divino, entre outras. Mulheres não participavam dos rituais musicais. Por isso, as segundas vozes tinham de ser feitas por homens. Daí a necessidade de uma dupla, formada por homens. É daí que vem aquele modo exótico de cantar, considerado “irritante” por alguns, uma segunda voz que, uma vez masculina, acabou ficando daquele jeito estridente. Cornélio Pires levou esse modelo para o seu show de circo. A base era o contador de causo e a apresentação de duplas caipiras. Acabou criando uma tradição.
Cornélio Pires viajou por todo o Brasil com o circo, nas décadas de 10 e 20 do século passado. Realiza o filme Brasil Pitoresco (1925), com imagens de suas viagens. Em 1929, com o advento da indústria do disco de vinil no país, começou a gravar. E aí a coisa tomou proporções impressionantes.
Jorginho do Sertão, de sua autoria, interpretada pela dupla Mariano & Caçula, foi o primeiro registro fonográfico da história. Curiosidade: o Caçula da dupla foi pai do famoso Caçulinha, que ficou muito conhecido por ser o músico-maestro do programa Domingão do Faustão, ao longo de mais de 20 anos. A gravadora é a Columbia. Depois Continental.
Entre causos, músicas, piadas e imitações, Cornélio Pires gravou — apenas naquele mesmo ano de 1929 — incríveis 53 títulos, em formato compacto, lado A e lado B, o que somavam 106 registros no total. Naquele início da indústria do disco no país, dá pra dizer que Cornélio Pires foi o primeiro produtor independente.
Trabalha na Rádio Difusora, onde propaga ainda mais seus discos. Publica a obra Samba e Cateretês, em 1932, e realiza o filme Vamos Passear (1934).
Com o tempo os shows vão diminuindo. Consagrado, Cornélio Pires descobre o espiritismo. Muda paulatinamente a ênfase de suas palestras e conferências, e também de seus textos em jornais e revistas da época, bem como suas intervenções no rádio.
Lança por editora própria sua Enciclopédia de Anedotas e Curiosidades, em 1945. Pires encerra então sua atividade jornalística e começa e dedicar-se exclusivamente aos shows e a produção e venda de discos. Cria o Teatro Ambulante Cornélio Pires, trupe com a qual viaja todo o país, mais uma vez.
No meio da década de 1950 retorna para sua Tietê natal, onde passa a se dedicar a atividades religiosas. Retorna a São Paulo doente, e interna-se no hospital das Clínicas, onde morre em 1958. É sepultado em sua terra natal, onde há hoje um museu em memória de sua impressionante trajetória.
Não é possível mensurar a dívida que a cultura brasileira tem para com Cornélio Pires. De Mário de Andrade nos anos 1940, passando por Inezita Barroso nos 50 e 60, Antonio Cândido nos anos 70 e Rolando Boldrin em décadas mais recentes, todo e qualquer pesquisador ou expoente da música e cultura regional brasileiras tem um tributo para com o homem que primeiro registrou este cancioneiro e suas histórias, seus causos, e seu humor.
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Leia. Ouça. Assista:
Brasil Pitoresco – As Viagens de Cornélio Pires – 1925
O Cotitiano Caipira Sob a Ótica de Cornélio Pires – pdf de Elton Brino Ferreira
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Imagens: reprodução