Crucificados Pelo Sistema. O grande disco do punk latino americano


Há 36 anos, era lançado em São Paulo o álbum que viria a influenciar todo rock pesado feito no país dali adiante. Aquele grito da periferia ressoa até hoje

O mundo morreu, o ódio venceu
O que é que eu vou fazer?
Doenças fardadas
A paz mutilada
Eu vim para viver
Tenho medo do presente
Tenho medo do futuro
E de tudo que nos cerca
Sigo meu caminho
Meu caminho é morrer!
Morrer

Morrer

Composição: João Gordo

 

Ao descer na estação São Bento no centro velho de São Paulo, no início da década de 1980, a certeza que alguém poderia ter é a de encontrar por ali reunida parte de uma geração que se recuperava de uma ditadura violenta que atrasou o país em décadas e gerou a mais nefasta dívida externa de que se tinha notícia no terceiro mundo.

A violência urbana e desigualdade estavam no auge histórico. Tudo isso por força e obra de uma cúpula militar que, apoiada pelo empresariado mais endinheirado, implantou tal regime sob o pretexto de “abrir o país ao capital internacional e livrar a sociedade do comunismo”.

A mesma balela de sempre. Em 20 anos de regime, o país era um império estatal de fazer corar a União Soviética. O Brasil não tinha computadores pessoais ou carros e instrumentos importados. Telefone era um bem, não um serviço. Casa própria um sonho para poucos. Era um país fechado.

Este cenário que o Brasil enfrentava no período refletiu na música de uma certa ordem de pessoas. O povo da periferia trabalhadora. Uma parte dela, formada por jovens de menos de 20 anos, que se reunia no largo contíguo à estação São Bento, à sombra do mosteiro beneditino homônimo onde estudaram Haroldo de Campos e Paulo Leminski, em tempos antigos e diferentes. Eram os punks.

Enquanto nas rádios do país já era notável o predomínio do pós-punk de grupos como Titãs, Ira! e Legião Urbana, havia ainda, com o devido atraso de países sob ditadura, o surgimento de bandas oriundas de uma cena punk que já datava de alguns anos, mas que naqueles anos 80 começava a chegar aos estúdios para registrar seus primeiros álbuns.

Foi debaixo desse ruído todo que João Gordo, Jão, Mingau e Jabá entraram em uma sala de gravação na rua Augusta para registrar, após algumas participações em ruidosas coletâneas, seu primeiro LP, pelo selo Punk Rock Discos. Eles eram os Ratos de Porão. O ano era 1984.

O registro é repleto de letras enfurecidas com a tradicional instrumentação básica de guitarra-baixo-bateria. Crucificados pelo Sistema é o primeiro disco de uma banda hardcore da América Latina. Já nasceu clássico.

Tudo que for relacionado ao metal/punk/hardcore surgido depois no Brasil deve seu tributo ao primeiro disco dos Ratos de Porão.  Bandas como Sepultura e Sarcófago, depois Mutilator ou Infernal, em que pese serem de outras cidades e pertencerem a outro gênero que não o punk, existem ou existiram graças ao RDP.

 

Quando eles resolverem nos cobrar
Nosso território teremos que doar
Nossa divida externa não há jeito de pagar
Não!O dólar aumenta e nossa divida também
O dólar aumenta e nossa divida também
E não há jeito de pagar
Não adianta se desculpar

O FMI Não está nem aí
O FMI Não está nem aíFMI
Somos todos uns vendidos

FMI

Composição: Jão

 

Rebelião contra o estado (de coisas, ou propriamente dito), aversão a conceitos pequeno-burgueses, agressividade. As vozes soam como gritos, sem a menor vergonha de o serem. Era verdadeiramente um berro, um desabafo. São menos de 20 minutos (17 pra ser mais exato) de barulho e revolta.

A poética inspirava revolução. Jão (hoje guitarrista) tocava bateria; Mingau (atual baixista do Ultraje a Rigor) era o guitarrista e autor de riffs que marcaram para sempre; Jabá conduziu um baixo violento e gorduroso, talvez o elemento mais bem timbrado da gravação; e o resto ficou a cargo de João Gordo, que começava a escrever ali sua história marcante na cena brasileira. Certamente o personagem mais importante do punk nacional até os dias de hoje, em termos de notoriedade.

É punk / hardcore, inspirado por bandas como Buzzcocks, Varukers, Discharge e Exploited, com temática que remete à periferia das grandes cidades brasileiras, especialmente aquela São Paulo efervescente do início daquela década, uma das cenas culturais mais impressionantes e agitadas do planeta. O papel de Crucificados Pelo Sistema pode ser credenciado também como inspirador dos rappers, que já de há muito são a grande voz da mesma periferia, e que ironicamente dominam as dependências do mesmo largo São Bento nos dias de hoje.

Mas Racionais MC’s e Emicida são assunto pra uma outra história. Seguimos crucificados. E o sistema finca um novo prego a cada dia. Impressiona a foto do índio lutando pelos seus direitos em Brasília, em pleno ano pandêmico de 2021, com a camiseta da banda que faz alusão ao álbum. Sua contemporaneidade encerra toda e qualquer discussão ou dúvida que se possa ter quanto à relevância da obra.

Os Ratos de Porão seguiram seu caminho, tornando seu som cada vez mais crossover e próximo do trash metal, superaram as tretas com membros do antigo movimento punk, que os acusavam de “traidores”, sem qualquer propósito. Realizam turnês por todos os continentes, sendo respeitados em todos os lugares. João Gordo trabalhou na MTV e depois de uma passagem malfadada na Record mantém um canal no Youtube com um programa de entrevistas e culinária vegana. Ajuda os sem teto pela cidade de São Paulo, distribuindo comida, através uma ong criada por sua esposa. Todos os membros atuais da banda são antifascistas de carteirinha.

Em 2015 saiu um documentário dirigido por Fernando Rick com depoimentos de diversas pessoas importantes do movimento, em comemoração aos 30 anos do disco. Participaram Kid Vinil, Sandra Coutinho, Pierre (Cólera) entre outros.

Crucificados pelo Sistema, sem a menor pretensão de sê-lo, continua vivo, como um dos discos mais importantes de toda música feita em um país chamado Brasil. Isso não é pouco.

Leia. Ouça. Assista:

Crucificados Pelo Sistema – álbum completo

Crucificados Pelo Sistema – documentário, de Fernando Rick

BotinadaThe Rise of Punk Rock in Brazil – documentário, de Gastão Moreira

 

Imagens: reprodução