Escritora de Curitiba lança livro sobre a palavra feminina e a luta da mulher para ser ouvida


Mulher pede palavra: em novo livro, escritora e psicanalista aborda relação entre a palavra e o silenciamento feminino

Terceiro livro de Eliane de Christo costura a palavra e o atravessamento do silenciamento nos corpos de mulheres. Um dos destaques do livro, resultante de seu doutorado em linguística, é aprofundar a concepção freudiana de histeria

“No intervalo desses fragmentos, o livro escreve o vivido
vergado pela lembrança. Lembrança de não deixar esquecer.
Com palavras encantadas, mal ditas e bem ditas, Eliane tece
suas trilhas sempre fora de trilhos que permitiriam o deslizar
sem sobressaltos… e assim faz do theoros poiesis.”

Viviane Veras, que assina a orelha da obra

“Neste belo e arrebatador livro, Eliane de Christo, na sua ética de
legitimar voz a quem não tem voz, alarga as margens de nossa
sensibilidade e abre espaço, com a psicanálise, a arte, a linguística
e a antropologia, para que mulheres digam de si, escolham os
próprios silêncios e se autoproclamem, para além de inscrições de
corpos, dores e cicatrizes. O que pode uma mulher dizer de si?
Pergunte a elas, diz Eliane.”

Amanda Mont’Alvão Veloso, psicanalista, na quarta capa da obra

Um livro que se debruça sobre a problemática o uso das palavras e o recurso da fala, sob a perspectiva da psicanálise e da literatura. Assim pode ser apresentado “Mulher de palavra: encantada, mal dita, bem dita”, terceira obra da escritora, psicanalista e jornalista paranaense Eliane de Christo (@elianedechristo). Publicada pela Editora Paraquedas, a obra (166 pág.) escancara e relaciona ainda temas como sintoma, corpo, palavra e histeria. O livro conta com prefácio assinado pela pesquisadora Maria Francisca Lier-Devitto, a orelha é assinada por Viviane Veras e a quarta capa conta com comentário da psicanalista Amanda Mont’Alvão Veloso.

O trabalho, fruto do seu doutorado em linguística pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), tem um viés autoetnográfico, atravessado pelas escritas literária e acadêmica, revelando as múltiplas experiências da autora. Em sua obra, Christo costura diversas vivências pessoais e autores de referência. De mãos dadas com Clarice Lispector e Manoel de Barros, entrelaça a infância vivida junto à avó benzedeira com o trabalho que ela realizou, já adulta, com meninas em situação de rua, como trabalho de conclusão de curso em jornalismo. É este último relato que situa a autora na psicanálise e a conduz pelos caminhos que a levam a publicar “Mulher de palavra: encantada, mal dita, bem dita”. De acordo com a autora, a obra “tem no centro da discussão a palavra calada que aparece no corpo, na história do sujeito, mas também a palavra que é bendita e que produz efeito”.

Christo narra seu “encontro” com outras mulheres, principalmente pela perspectiva da pesquisa acadêmica. É por meio dessas biografias que ela se depara com a da educadora, escritora e jornalista Anália Franco, sobre a qual desenvolveu sua dissertação de mestrado, numa busca de “descongelar palavras que contam a história escrita por mulheres e que incluem as mulheres”. Entre as palavras silenciadas e as palavras que abençoam, a escritora põe em relevo a palavra que cura.

“Escolhi esses temas porque o silenciamento sempre ocupou, em mim, lugar de incômodo. Mulher pede palavra, a fim de não fazer sintoma no corpo. E a histeria denuncia, faz denúncia com o corpo, dentro do qual palavras estão amordaçadas e pedem um lugar. A solução de compromisso vem em forma de sintomas, os quais revelam o mal estar de que padece. O recurso linguageiro abre passagem para a ciranda de palavras, num arranjo que dá representação aos afetos soltos“, ressalta ela.

Outro ponto que merece destaque é a relação que Christo constrói com o conceito de histeria, do psicanalista Sigmund Freud, além de tensionar os estudos do autor sobre a feminilidade. Mais do que criador de um conceito, Freud é eleito na obra como um artista e a mulher histérica, como sua musa. “Mais do que a escuta de Freud, aquilo que é dito e revelado pela mulher funda a prática analítica”, explica a autora.

Em seu livro, Christo articula “palavra” e “corpo” e é por isso que a histeria ocupa espaço na discussão, pela incidência de sintomas no corpo. “O corpo na histeria participa de maneira expressiva, sendo ela, inclusive, representada como um corpo em arco, arco da histeria”, assinala. Da mesma forma que as benzedeiras, representadas simbolicamente pela avó da autora, corpo e linguagem estão intrincados em um cenário ocupado pela palavra como cura e encantamento.

“Não pretendo com isso aproximar Freud das benzedeiras, mas apenas iluminar o poder da palavra, num caso e noutro. No caso das meninas de rua, escapar dos perigos passava também pela construção de um código – vidas amaldiçoadas, corpos devastados e palavras duras, codificadas”, diz um dos trechos da obra.

Escrever como tentativa de reparação: processos de uma escrita intertextual

Para a autora, o livro surge como tentativa de reparação do silenciamento imposto a tantas mulheres, “tanto as que me antecederam, quanto as contemporâneas, ou mesmo as inúmeras vítimas de feminicídio”, destaca Eliane, que escreve desde os 15 anos. “Comecei a escrever quando a angústia da adolescência transbordou e a caneta e o papel surgiram como um contorno possível para eu colocar minhas palavras”, conta.

Hoje, a autora considera que seu processo de escrita exige muito do seu corpo e psiquismo, mas também se vale do mundo vivido e vívido. “É um processo caótico. Tem muitos dias que não escrevo nada, mas histórias inteiras passam por mim. Quando as palavras se impõem, elas me põem sentada ou encostada na parede”, ilustra. A motivação da escrita do livro nasceu antes do doutorado, mas foi só na travessia desse período que “seus caracteres subverteram a escrita acadêmica e o tema sobre a mulher se esparramou pelos capítulos”, afirma a autora.

Para Maria Francisca Lier-Devitto, que assina o prefácio da obra, Christo imprime no texto “um jogo delicado, que coloca em relação Psicanálise e Linguística de modo cuidadoso e eficiente”. “É um trabalho complexo: nem autobiográfico, nem sociológico, nem estritamente acadêmico”, resume.

Entre as referências que a acompanharam na composição da obra, Christo enumera “Estudos sobre a histeria” de Sigmund Freud e “A hora da estrela” de Clarice Lispector e “O livro sobre o nada” de Manoel de Barros. O poeta mato-grossense é, também, uma de suas referências literárias, junto de Clarice Lispector, Virginia Woolf, Jorge Amado, Fiódor Dostoiévski e Fernando Pessoa. “Influenciou-me, sobretudo, as histórias orais, causos e folclores contados por minha avó”, lembra.

Trajetória na escrita: outros livros já lançados

“Mulher de palavra: encantada, mal dita, bem dita” é o terceiro livro de Eliane Christo, que também publicou “Anália Franco: A educadora e seu tempo” e “O menino que rasgou a nuvem”. Atualmente, a escritora se dedica a dois projetos: um de ficção literária e outro voltado para a psicanálise. Christo adianta que suas próximas obras também versarão em torno do tema mulher e escuta, numa espécie de “concerto” de vozes femininas.

Psicanalista pelo Centro de Estudos Psicanalíticos (CEP), Eliane Christo é jornalista pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), mestre em educação pela USF e doutora em linguística pela PUC-SP. A autora tem grande interesse por pessoas e suas histórias e concorda com Clarice Lispector quando a escritora diz: “a palavra é a minha quarta dimensão”.

Confira um trecho de “Mulher de palavra: encantada, mal dita, bem dita”

“Se lá no século XV a caça às bruxas se dava a pretexto de calar as mulheres e interditar seu papel de transmissora da cultura popular – como aponta o estudo sobre as mulheres e a loucura feito por Carla Cristina Garcia, já mencionado na introdução deste livro –, temos que admitir que é no mínimo significativo que entre os sintomas mais emblemáticos da histeria esteja a conversão corporal, imagem que tanto se aproxima de um corpo possuído, diabólico, plantado no imaginário popular. Curiosamente, os dicionários definem conversão como “mudança de forma, transmutação; mudança de religião ou seita, de visão, de costumes etc.; alteração de sentido, de direção; transformação de personalidade; substituição de um afeto por uma manifestação corporal…”. A voz, a fala, é a moeda com que as mulheres pagam para continuar existindo com um certo mutismo, mutação, mutilação, submissão às leis ditadas pelo discurso corrente da época.” (pág. 65)

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Fotos: Divulgação