O Inconsciente das Cidades: Sonhar entre Curitiba e Buenos Aires.


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A cidade dorme e sonha. Edifícios de um corpo coletivo que falam através de rachaduras, grafites e portas lacradas. Buenos Aires espalha nas calçadas pés que marcham — pelos 30 mil desaparecidos na ditadura — deixando marcas como os trilhos dos bondes esquecidos. Há uma faixa com quilômetros de retratos, mas a história sussurra: foram mais. A rua, aqui, não é cenário, mas protagonista e os portenhos a ocupam como divã, despejando angústias em tangos e encontros que ecoam de bares sem fim.

Curitiba, como muitas cidades do Brasil, se esforça para não lembrar. Seus torres de vidro, de estética lisa falam de um projeto: ser outra, de outro país talvez. Os vestígios do passado como um grampo de amarrar cavalos cravado em uma calçada, uma janela art nouveau escondida entre placas de construção, são sintomas de uma memória que teima em não ser apagada.

Ir embora como ato de resistência, ficar como de rebeldia.

Caminhar entre essas duas cidades é navegar por sonhos opostos. Em Buenos Aires, cada esquina é um encontro casual com séculos de história — um café que já foi ponto de encontro de anarquistas, uma rua que está no poema de Borges. A arquitetura beaux-arts, imponente (e decadente) zomba da ideia de progresso linear. Em Curitiba, o passado aparece envergonhado, edifícios antigos se tornando raridade, presas fáceis para a voracidade da especulação imobiliária. Qual cidade da América do Sul não se orgulha de seus prédios modernos, na tentativa de apagar as cicatrizes urbanas que o inconsciente coletivo expressa em sua arquitetura?

Entrar no shopping, em ambas, é adentrar a anti-cidade, deliberadamente suspender a dimensão crítica da rua para me tornar, eu também, um produto. Buenos Aires também vive esse apagamento; palácios do século XIX são agora templos de mármore e fachadas vidradas — ainda assim, o cheiro de medialunas assadas insiste em vazar de uma padaria escondida. Essa é a imagem da resistência urbana: o direito a se perder entre odores, grafites e sons de música. O vestígio da cidade antiga conflita com o que está por acontecer, atrita com a vida que ainda não aconteceu, mas o shopping tenta empacotar o futuro.

A psicogeografia aqui é visceral. Uma cidade grande e antiga se oferece como um labirinto de significados. Caminhos sem destino e esbarros em manifestação, um casal girando na milonga, artistas de metrô. Lembro das muitas vezes que caminhei por muitas quadras de Curitiba sem encontrar ninguém na rua.

Ambas as cidades são vizinhas se considerarmos que ambas estão na Bacia Platina. Buenos Aires, com seus quatro séculos de um império que nunca foi; Curitiba, com seus três séculos de ausências disfarçadas de progresso. A primeira se perde na memória da própria grandiosidade; a segunda, em seu medo de se achar.

Sonho acordado: imagino que a noite cai igual sobre ambas. Em Buenos Aires, a noite traz o eco do grito daqueles que marcharam durante o dia, em Curitiba o sonho de esperança de que um dia algo semelhante acontecer. Vejo as duas se tocando pelas águas da América do Sul — não pelo achatamento das torres de vidro – mas por uma calçada qualquer, onde uma folha seca gruda no cimento fresco e um grafiteiro embeleza o concreto cinza.

Enquanto isso, sigo caminhando à deriva em um mapa inconsciente.