Um certo comendador italiano de nome até hoje ignorado estacionou sua Maserati 49 no barro seco de Cornélio Procópio, em 1960. O café era ouro. O Esporte Clube Comercial ainda não havia conquistado o título que consagraria a equipe como o maior fenômeno do norte pioneiro paranaense.
Ele estava atrás de Nilo. Uma verdadeira lenda dos gramados locais. Tempo ido, de quando o Palmeiras ainda montava sua primeira Academia. As façanhas do garoto já tinham cruzado fronteira, e chegado às mesas diretoras do Parque Antarctica. Rápido, finalizador, decisivo, matava no peito com classe, visão de jogo absoluta, lançamentos perfeitos. Uma joia rara.
O comendador desembarcou ladeado de outros dois, o motorista e uma espécie de segurança. Todos em ternos muito bem cortados. Morriam de calor. Defronte à casa de madeira, no bairro Independência, endereço dado de boca por alguém. Todos conheciam o garoto na cidade. Uma cerca de madeira separava a rua de terra da pequena criação de galinhas, bacia de metal recostada à beirada da casa, uma horta e um tanque. Uma lata de óleo de soja de 5 litros fazia as vezes de vaso a uma avenca tímida, algumas roupas estendidas no varal e um cachorro magro deitado perto da soleira, que grunhiu desanimado anunciando a presença dos carcamanos. Minha avó, a mãe de Nilo, surgiu por detrás dos lençóis que secavam ao vento suave que aliviava o inferno de 40 graus.
Assustou-se com a presença vultuosa dos homens, serviu-lhes jarra de água, estranhada com o sotaque do Bixiga. Direto ao assunto: o comendador perguntou pelo garoto. Queriam levá-lo a São Paulo imediatamente. Mas jogador de futebol, naquela época, não era profissão de respeito. Nilo não estava em casa. Fazia expediente na oficina mecânica do Hiroshi. Duas horas de leva-e-traz depois, o veredicto da dona Raquel, vovó: “De jeito nenhum que vocês vão levar meu menino. Ele é arrimo de família. Sem ele a gente morre de fome”. E não houve são Genaro que fizesse o italiano convencer a cabocla devota de Nossa Senhora do contrário. Ponto final. Nilo ficou em Cornélio. E o Palmeiras teve que se contentar com Ademir da Guia. O resto é história.
Eu nasci algum tempo depois, filho da única filha mulher da dona Raquel, mãe do craque, o mais velho de cinco homens, todos mecânicos. Eu vi meu tio jogar. Pouco entendedor, a única descrição que posso proferir é a de que, usando os pés, ele parecia dominar a bola com as mãos. Ela deslizava perfeita ao toque carinhoso do artista. Era de uma elegância impressionante. Eu passava as férias de julho e de verão no interior. O tio Nilo já em “fim de carreira”, jogando nos amadores locais, me levava às partidas em fazendas e diversas várzeas. Uma vez, no estádio do 9 de Julho, ainda hoje na mesma vila Independência, eu vi, com os meus olhos que a terra há de comer, ele parar uma briga generalizada nas arquibancadas com um golaço. Simplesmente. Recebeu a pelota no bico da grande área, pela esquerda, percebeu o goleiro adiantado, e como se antevisse o universo, colocou no ângulo. A briga parou, o povo foi ao delírio. Ele saiu andando, nem sequer levantou os braços. Nilo era da paz. Não gostava de confusão.
Ele nos visitava em Santos com a família. Era 1969, por aí. Pelé e sua turma treinavam nas areias do Gonzaga. O técnico Antoninho, campeão paulista, dizia que “era bom pra musculatura das pernas”. Estávamos em uma tarde de praia e meu tio foi lá bater uma bola com eles. Aqueles caras, os Beatles do futebol, apenas. Completou o time e acabou com o treino. Isso eu não vi, pois me ocupava certamente com meu caminhãozinho de areia, onde construía algum castelo. Mas todos voltaram dizendo que o Rei pediu pra ele ficar e jogar com eles, pois era o melhor jogador que ele já havia visto. Ao que ele respondeu que não podia, pois já era pai de família e passara dos 30, algo assim. Já não era a dona Raquel, mas o próprio homem feito que esnobou os deuses do velho e rude esporte bretão.
Isso virou folclore lá em casa por longos anos, nos almoços de domingo. É muito certo que pode ser uma mentira, típica de pescador, função que o tio Nilo também exercia muito bem. Corintianos, todos, inclusive o tio, abençoavam a recusa da dona Raquel aos palestrinos, anos antes. “Pensa só, se com Dudu, Ademir e Leivinha nossa vida já é difícil, imagina com Dudu, Ademir, Leivinha e Nilo?”, ao que todos riam muito.
Já adulto, até hoje me emociona a história que ele contava de como começou a jogar “em campo de verdade, onze contra onze”. “Eu era acostumado com as biqueiras, barrancos e bola de meia. Meu filho! Quando me colocaram num campo de grama, arrumadinho, liso que parecia um tapete, e aquela bola de couro redondinha, eu já saí deslizando. Que maravilha que era aquilo!”. Vendo jogadores de hoje, com pequenas ressalvas a um Romário, um Neto, e poucos outros, ele dizia que “são todos uns pernas de pau, têm medo da bola. Homem que é homem não pode ter medo da bola”.
Em tempo: o Comercial foi o grande campeão paranaense de 1961. Nilo não jogou, pelos mesmos motivos, apesar de ser o grande craque da cidade. Reza a lenda que vez em quando substituía um ou outro, e detonava os adversários, mas não assinava a súmula como ele próprio. “Ninguém ia descobrir mesmo”. Foi um mito. Faleceu, boêmio e feliz como viveu, em 2010.
Este é um pedaço da história do maior jogador de todos os tempos, segundo Pelé. É a parte que eu sei. Você não precisa acreditar. Quando passar em Cornélio, pode perguntar e conferir algumas fotos nas paredes do bar do Hiroshi, aquele mesmo da oficina. Lá nunca me deixaram pagar a conta, apenas por ser sobrinho do cara. Isso é verdade. Tanto faz, a realidade é mesmo uma coisa muito chata.
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