Legado do cartunista transcende o desenho, despertando consciência e cidadania, sempre através do humor. Artista foi expoente da redemocratização do país
É consenso entre cartunistas e apreciadores dos cartuns o apreço ao traço. O estilo do desenho de cada um. É como uma impressão digital. De fato, a exemplo da caligrafia, ninguém tem o traço igual ao outro, por mais que se imite. É uma marca registrada.
Dentro do universo dos cartunistas brasileiros, é tal e qual consensual que Henfil é o artista com traço mais específico, original. Dá-se de barato entre os seus colegas (contemporâneos e póstumos) também que é considerado o maior cartunista brasileiro de todos os tempos. Barbada.
Henrique de Souza Filho nasceu em Ribeirão das Neves, nas Minas Gerais, 1944, e cresceu em Belo Horizonte. Seu irmão sete anos mais velho, Herbert (o Betinho) o influencia fortemente no interesse pela política. Henrique Filho adere à Juventude Estudantil Católica (JEC), onde inicia militância.
Publica seus primeiros desenhos no jornalzinho da JEC: o Resmungo, no qual já se aventura em caricaturas divertidas dos líderes estudantis e políticos da época. Na Umes — União Municipal dos Estudantes Secundaristas — realiza trabalhos gráficos na confecção de cartazes, faixas, folhetos e ilustrações. Em 1962, trabalha como revisor na Alterosa, revista que tinha como editor-chefe o escritor Roberto Drummond, que o incentiva a se tornar chargista da publicação. Drummond sugere o nome Henfil ao novíssimo artista. O distinto escritor mineiro mal sabia que estava nomeando uma lenda.
Henfil já fazia caricaturas e charges para o Diário de Minas, maior jornal do estado, quando rumou para o Rio de Janeiro, em 1965. Trabalhou no Jornal dos Sports, onde criou os personagens que se tornaram símbolos definitivos dos times mais populares do Rio de janeiro, com destaque para o Urubu, que representava o Flamengo, até hoje o apelido mais popular do clube.
Atuou ainda nas revistas Realidade, Visão, Placar e O Cruzeiro, entre outros veículos. O que mais marcou sua trajetória foi O Pasquim, semanário produzido entre 1969 e 1991, que chegou a circular com 200 mil exemplares e infernizou o regime militar.
Todo folclore que marcou a passagem do Pasquim pela imprensa nacional teve Henfil no protagonismo. Sua veia para a política colou de imediato com toda equipe do jornal, que tinha além dos jornalistas Paulo Francis, Tarso de Castro e Fausto Wolf, ícones do cartum como Ziraldo, Millôr Fernandes e Jaguar. No Pasquim, Henfil estava enfim no primeiro time de sua arte. E jogava com a camisa 10.
Sua veia para a política tinha como norte algo inegociável, o humor. Humor acima de tudo e de todos. “O verdadeiro humor dá um soco no fígado de quem oprime”, disse certa feita. O humor é subversivo por natureza. E com Henfil ele veio como deve ser. Abriu corações e mentes, não sem antes causar dores de barriga aos militares — por desconforto —, e aos leitores — de tanto rir.
Ainda no Pasquim, deixou muitos personagens ainda frequentes no imaginário de quem teve a sorte de ler à época. O bode Francisco Orelana, o cangaceiro Zeferino, a Graúna, os fradinhos Baixinho e Cumprido, e Ubaldo, o Paranoico. Com simplicidade surpreendente no traço, absolutamente inconfundível. E o comunicado político sempre presente.
Escreveu vários livros, entre os quais Hiroshima, Meu Humor (1966), Diário de um Cucaracha (1976), Henfil na China (1980) e Como se Faz Humor Político (1984). Era admirador da arte do cinema e se aventurou como diretor no filme Tanga (Deu no New York Times), de 1987. Foi ás bancas a revista Fradim (1971-1980), somente com cartuns de Henfil.
Seu irmão Betinho exilou-se no Chile, depois na França durante o regime militar. Foi cantado em verso na canção O Bêbado e a Equilibrista, de João Bosco e Aldir Blanc, na passagem que pedia “a volta do irmão do Henfil”.
O cartunista foi determinante na controversa luta pela Anistia política, prometida e perpetrada pelo governo de João Batista Figueiredo em 1979. A lei anistiava ambos os lados da luta armada, os presos e exilados pelo regime, mas também os torturadores e agentes da lei. Aceita pela maioria da esquerda, a volta dos exilados foi o grande momento político daquele fim de década. Betinho volta, enfim. E outra luta começa.
A emenda Dante de Oliveira — que estabeleceria eleições livres novamente — é apresentada ao Congresso Nacional, e a campanha para sua aprovação teve Henfil como um de seus maiores expoentes. Teotônio Vilela, ex-membro da Arena, mas àquela altura favorável ao restabelecimento das eleições diretas, ouviu de Henfil a seguinte pergunta, em uma reunião: “doutor Teotônio, diretas pra quando?”, ao que Teotônio vaticinou: “diretas já!”. Estava pronto o slogan do maior levante popular da história brasileira. O ano da graça de 1984 iniciou com o grito nas ruas de “Diretas Já”.
A emenda não passou, e mantiveram-se eleições indiretas como era o modelo durante o regime militar, chamado Colégio Eleitoral, no qual deputados elegiam o presidente. Mas o poder voltou aos civis, com a eleição de Tancredo Neves, sua morte antes de assumir e a posse do vice José Sarney.
Os anos da década de 1980 não foram marcados apenas pela redemocratização, gel no cabelo, rock brasileiro, estética gótica e movimentos de ordem democrática. Houve, para além da praga das baterias eletrônicas e o teclado Rhodes na música, o advento da Aids. A doença, cujo vírus é o HIV, é transmitida pelo sangue. Henfil, a exemplo de seus dois irmãos, Betinho e Chico Mário, era hemofílico.
Os três contraíram a doença através das diversas transfusões de sangue que precisavam realizar a cada mês, parte do tratamento contra a hemofilia. Henfil foi o primeiro a morrer. Em janeiro de 1988. Chico Mário se foi em março.
Betinho ainda viveria para liderar a campanha Ação da Cidadania Conta a Fome, e ver a democracia enfim restabelecida no país. Faleceu em 1997, com o Brasil em pleno gozo democrático e de novo no mapa cultural do mundo.
É possível dizer que Henfil é o Jimi Hendrix do cartum. Seu traço era nervoso como uma guitarra distorcida. Seu humor era ácido quase lisérgico, dado à viagem e consciência que despertava. Seus personagens, inesquecíveis.
Fosse vivo, estaria na luta contra o fascismo que agora impera. Mas que ante o humor e a graça da gente que Henfil inspirou, vai retornar ao esgoto de onde surgiu.
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Ouça. Leia. Assista:
Diário de um Cucaracha, Henfil – Estante Virtual
Fradim, Estante Virtual
Tanga (Deu no NY Times), 1987, dir. Henfil
Henfil, documentário, dir. Angela Zoé
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Imagens: reprodução