Nunca um cartunista foi tão underground quanto o autor das revistinhas secretas que iniciaram mais de uma geração de jovens e adolescentes nas maravilhas do erotismo
Quando Marisa Monte lançou seu álbum duplo Barulhinho Bom em 1996, a capa vinha com um desenho cujo traço chamou a atenção de quem tinha mais de 30 anos à época. Ao abrir o encarte e conferir o projeto gráfico todo, onde estão as letras e ficha técnica do trabalho produzido por Arto Lindsay, Carlinhos Brown e a própria cantora, a referência era clara: o disco era dedicado a Carlos Zéfiro, e repleto de ilustrações com desenhos de seus antigos “catecismos”. O portador do novíssimo álbum entendia na hora a que espécie de “barulhinho bom” a obra se referia.
Corte para qualquer período entre as décadas de 1950 e 70. Um jovem chega a uma banca de jornal, recolhe o periódico de sua preferência, e dirige-se ao jornaleiro. Pede além do jornal ou revista, o acréscimo de “um catecismo por favor, senhor”, ao que discretamente o dono da banquinha retira de algum lugar oculto dos olhos passantes um pequeno gibi envolto em embalagem, o qual é colocado de maneira furtiva entre as dobras do periódico, e “obrigado, até a próxima”.
O conteúdo do “catecismo”: quadrinhos de sacanagem desenhados por um tal Carlos Zéfiro. Uma verdadeira lenda, contemporâneo das revistinhas suecas, e paralelo à literatura erótica de Adelaide Carraro e Cassandra Rios. Zéfiro ajudou a introduzir mais de uma geração de jovens imberbes ao universo do sexo pornográfico.
Carlos Zéfiro era o pseudônimo utilizado pelo pacato funcionário público lotado no departamento de imigração do Ministério do Trabalho, Alcides Aguiar Caminha. Carioca, nascido em 1921, era frequentador da noite boêmia do Rio de Janeiro. Compositor, foi parceiro de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito, entre outros. Ao lado dos parceiros citados compôs o clássico A Flor e o Espinho, gravada originalmente por Raul Moreno, depois por Leny Andrade e Beth Carvalho, além do próprio Nelson.
Desde os 25 anos, Caminha era casado com dona Serat Caminha, com a qual teve cinco filhos. O então ex-boêmio e discreto funcionário público mantinha a saudável atividade paralela de desenhista de historietas eróticas. Manteve da própria família a identidade secreta por muitos anos.
Os “catecismos” eram desenhados de forma rudimentar, sem uma técnica escolástica definida, mas acabaram dando um traço inconfundível — e muitíssimo imitado — ao misterioso Zéfiro. Eram basicamente brochuras de 24 ou 32 páginas, em papel ofício dobrado na medida de 14x21cm, ou um quarto de ofício, a depender do período.
Toscas, desenhadas muitas vezes com um quadrinho por página, perfaziam histórias de mulheres solitárias em aventuras sexuais diversas. Casadas proibidas em ato pervertido com mecânicos e jardineiros. Jovens seduzidos por senhoras de família experientes que os defloravam. Enfim, todo repertório das histórias ditas pornográficas e do fabulário erótico da galáxia.
As revistinhas eram impressas em gráficas diferentes, mantendo assim a clandestinidade da distribuição, para a qual, a bem da verdade, a censura oficial fez certa vista grossa à pequena contravenção. Mas vendiam coisa de 30 mil exemplares por edição.
Somente lá pelos anos 1970 a ditadura militar tentou deitar seus tentáculos sobre o misterioso cartunista, mas nunca chegaram a encontrá-lo. Certa vez, prenderam o amigo e editor Hélio Beltrão achando ser ele o autor das escandalosas publicações. Mas nada conseguiram provar e não chegaram a Caminha, que sendo funcionário do governo poderia perder seu salário caso fosse envolvido em atividade paralela. É provável que Zéfiro tenha encerrado suas atividades por este período, aposentando-se e caindo em eterno anonimato.
Até que em 1991 o jornalista Juca Kfouri era diretor da revista Playboy brasileira. Todo mercado editorial enfrentava gravíssima crise devido ao confisco da poupança efetivado pelo governo de Fernando Collor de Mello. Contratar modelos caras para a chamada de capa da revista era um sufoco tão grande quanto pagar por reportagens especiais.
Juca teve uma ideia: ele mesmo realizar algo que não implicasse a contratação de modelos ou free lancers e tivesse o apelo erótico afeito à revista. A solução foi uma edição com as “mulheres de papel” de Carlos Zéfiro.
Mas havia um problema. O mesmo da polícia e da censura ao longo de três décadas: quem era Carlos Zéfiro? Juca foi atrás. No caminho da reportagem, deparou-se com a própria resistência de Alcides Caminha, que já contava 69 anos, além de diversas pistas falsas. Inclusive um imitador. Entrevistou deus e o mundo, rodou por delegacias e antigos boêmios, até chegar à lenda de sua juventude, que rendeu ótima matéria para sua revista.
A “saga” de Kfouri rumo ao encontro e a revelação de Carlos Zéfiro foi recontada em peça de teatro escrita e dirigida por Paulo Biscaia Filho, em montagem da companhia curitibana Vigor Mortis (Os Catecismos Segundo Carlos Zéfiro, 2011), com Leandro Daniel Colombo no papel de Juca. Também no livro de memórias Confesso que Perdi (Juca Kfouri, 2017).
Alcides Caminha morreu em 1992, aos 70 anos. Pouco tempo depois de ter sua identidade secreta enfim revelada ao mundo. Deixou lembranças ainda vivas na memória de muita gente.
Nunca foi realizada nenhuma pesquisa a respeito. Mas é de se imaginar que Barulhinho Bom, de Marisa Monte, seja provavelmente o álbum musical cuja capa tenha sido a mais manuseada da história da música.
Como arremata a reportagem de Juca Kfouri: “Carlos Zéfiro está vivo. Viva Carlos Zéfiro!”.
…
Ouça. Leia. Assista:
Confesso que Perdi – livro de Juca Kfouri
Os Catecismos Segundo Carlos Zéfiro – vídeo da Peça (dir. Paulo Biscaia Filho, 2011)
Macunaíma Exibe Zéfiro – a reportagem de Juca Kfouri
Carlos Zéfiro – obras completas
Imagens: reprodução