Outro Sertão. Guimarães Rosa e a Alemanha nazista


Documentário reuniu trechos de diários, testemunhos e imagens raríssimas do autor no seu período em Hamburgo, quando Hitler já colocava em prática sua fase mais radical

Vem de longe a relação de grandes nomes da literatura brasileira e o Ministério das Relações Exteriores, antes e depois de inaugurado o Instituto Rio Branco (1945) e sua posterior transferência para o palácio Itamaraty (1960).

Nomes da importância de Vinícius de Moraes, Raul Bopp, João Cabral de Mello Neto, José Guilherme Melchior e Erico Verissimo em tempos distintos prestaram serviços à diplomacia. Mas um vice-cônsul que serviu na Alemanha é sem dúvida dono da maior e mais inusitada aventura de um dublê de diplomata/escritor em terras estrangeiras.

O mineiro João Guimarães Rosa nasceu no então distrito de Cordisburgo, região central do estado, em 1908. Ainda criança mudou-se para Belo Horizonte, onde já adulto formou-se em Medicina. Foi enviado a Itaguara para o exercício da profissão. No sertão das Minas Gerais, tomou contato com toda antropologia sertaneja, que marcaria sua obra literária já em esboço inevitável, feito curso de rio. Indisfarçável como Diadorim.

Em 1933 foi aprovado no concurso do Itamaraty, iniciando carreira diplomática. Sua incrível e maior aventura tem início, no entanto, com a nomeação para o vice-consulado do Brasil em Hamburgo, Alemanha, em 1938.

Não é preciso lembrar que a Alemanha vivia o auge do regime nazista, desde que Adolf Hitler ascendera ao poder em 1933. No ano em que Guimarães Rosa desembarca em Hamburgo já era possível constatar os horrores do Holocausto, ainda de forma dissimulada, mas impossível de não se notar aos olhos de quem rodeia e frequenta os palácios.

Dentro dos limites que a função impunha — não apenas pela parte germânica, mas também e principalmente pelo governo brasileiro de Getúlio Vargas, que “namorava” o fascismo europeu, de início — ainda assim foi possível ao escritor exercer papel determinante para a salvação de vidas de inúmeras famílias de origem judaica, concedendo passaportes e asilo no Brasil.

Essa incrível e pouco conhecida história foi recentemente contada no documentário Outro Sertão, dirigido por Soraia Vilela e Adriana Jacobsen. O filme parte do registro da relação de Guimarães Rosa com a cultura alemã desde sua infância, bem como sua atuação como vice-cônsul no momento mais crítico da história do século 20.

O filme revela um conteúdo desconhecido e de relevância absoluta e inestimável. O documentário traz, inclusive, uma entrevista até então inédita no Brasil, realizada com o escritor na década de 1960 para a tevê na Alemanha, na qual ele discorre sobre sua obra e de sua atuação como escritor e diplomata no período nazista. Não se tinha conhecimento de praticamente nenhuma imagem em movimento do escritor.

A entrevista é um achado. Guimarães Rosa ouve as perguntas de um entrevistador em alemão, responde em português, sem a necessidade de tradução para si, e a resposta é daí sim transmitida em alemão por um intérprete, que completa a mesa. Com fluência rara e grande desenvoltura e simpatia, o escritor fuma e bebe com voracidade, e encanta com suas palavras.

O documentário todo é repleto de imagens em grande parte feitas por amadores. Como descreve o próprio release do filme, são cinegrafistas “alheios à estética oficial da propaganda nazista”. Eles esboçam o cenário no qual Guimarães Rosa viveu desde sua chegada na Alemanha, em 1938, até sua partida em 1942, devido ao ingresso do Brasil na Segunda Guerra.

O registro da dupla de realizadoras contém ainda trechos de cartas, contos e anotações em off, que vão nutrindo o espectador de impressões pessoais do autor de Grande Sertão: Veredas e Sagarana. Documentos inéditos (alemães e brasileiros) e testemunhos de judeus que fugiram para o Brasil por Hamburgo, bem como de amigos e críticos, recriam a experiência do diplomata.

Guimarães Rosa casou-se na Alemanha com a brasileira — também funcionária do Itamaraty — Aracy de Carvalho, que tem papel fundamental no auxílio prestado às famílias judias. Aracy teve reconhecimento do governo de Israel anos depois da guerra. É a única mulher brasileira homenageada no Jardim dos Justos entre as Nações, em um memorial oficial de Israel, criado para lembrar as vítimas judaicas do Holocausto.

Adriana Jacobsen é realizadora audiovisual e pesquisadora, licenciada em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo, graduada e mestra em Ciências da Comunicação pela Universidade Livre de Berlim. Vive no Brasil e na Alemanha.

Soraia Vilela é jornalista e tradutora, graduada em Comunicação Social pela PUC-MG e em Estudos Culturais pela Universidade Humboldt de Berlim, com mestrado em Cinema pela mesma universidade. Vive em Belo Horizonte.

João Guimarães Rosa é um dos maiores escritores da língua portuguesa em todos os tempos. Foi nomeado para a Academia Brasileira de Letras em 1963. Devido ao medo de passar mal pela forte emoção, adiou sua posse por cinco anos. Vestiu o fardão em 1967. Morreu três dias após assumir sua cadeira.

Outro Sertão foi lançado em 2013. Vem sendo exibido em festivais e mais recentemente (2021) é reprisado com certa frequência na TV Senado.

Um filme indispensável. Como Guimarães Rosa.

Ouça. Leia. Assista:

Outro Sertão – trailer

Conferência Adriana Jacobsen e Soraia Vilela – 2014

Guimarães Rosa – entrevista raríssima em Berlim, 1962

Imagens: reprodução