Personagem Beetle Bailey é publicado até hoje e já foi universitário antes de se alistar no exército. A censura já o baniu diversas vezes
É muito difícil para um cartunista manter uma tira com personagens de destaque, que dure por muito tempo. Mort Walker (1923-2018) conseguiu ter duas. Além da sátira familiar Hi and Lois, Walker publicou sua tira mais famosa, a irreverente comédia militar Recruta Zero (Beetle Bailey nos EUA).
Inicialmente uma tira, o universo do Recruta Zero gira em torno de um soldado raso em um quartel (o Camp Swampy) testando a paciência de seu comandante, o violento Sargento Tainha (Snorkel no original).
A ideia inicial de Walker para uma tira não tinha nada a ver com o exército. Enquanto desenhava caricaturas para o The Saturday Evening Post, ele decidiu criar uma história em torno de um estudante universitário chamado Spider, que mantinha o chapéu puxado para cima dos olhos e tentava navegar pela vida universitária fazendo o mínimo possível. Um vagabundo.
Mas “Spider” já era usado em outro personagem. Walker, então, apenas inventou referência a outro inseto: Beetle Bailey. O sobrenome era uma homenagem a um editor que o apoiava no Post.
O personagem não vendeu muito, e a King Features Syndicate (que distribuía as tiras) pensou em demiti-lo. Até que o autor fez o universitário se alistar no Exército. O próprio Mort Walker já tinha sido convocado, cumprindo quatro anos durante a Segunda Guerra Mundial.
Estreando em 1950, o autor não imaginava que estava iniciando um recorde para a publicação contínua de um mesmo personagem. Lidou com o Recruta Zero por longos 68 anos, ininterruptos.
É claro que uma publicação de humor, no centro da América macarthista, não ia passar incólume a qualquer espécie de censura. O jornal Stars and Stripes, das Forças Armadas dos EUA, que publicava a tira, proibiu-o de suas edições em Tóquio (corria a Guerra da Coreia) por temer que pudesse incitar o desrespeito aos oficiais (Zero era preguiçoso e normalmente descumpria ordens).
A proibição durou uma década e foi tão ridicularizada que o Recruta Zero se tornou uma presença recorrente nas manchetes dos jornais. A tira foi finalmente distribuída para mais de 1.800 jornais no mundo todo.
Em 1970, mais polêmica: Walker apresentou um novo personagem, o tenengte Jack Flap, um negro, membro do oficialato. No Brasil ganhou o apelido de Tenente Mironga. Mais uma vez, o Stars and Stripes optou por proibir a tira por medo de que incitasse a tensão racial entre os militares. E alguns jornais do Sul dos EUA também baniram a tira.
É claro que tal polêmica e censura trouxe ainda mais sucesso para os amigos de Zero. O cartum garantiu mais uma centena de jornais a sua lista.
Em 1997, o General Dureza (Amos Halftrack no original), o oficial comandante de Camp Swampy, foi acusado de sexista, tendo feito comentários indelicados durante décadas, dirigidos à voluptuosa secretária Miss Buxley (Dona Tetê, ou senhorita Cândida no Brasil/Portugal). Walker decidiu submeter o general a um treinamento de sensibilidade após uma série de manchetes sobre verdadeiros comandantes do Exército se comportando de maneira pouco ética.
Tanto as tiras quanto as historietas do Recruta Zero sempre tiveram sua base no humor. Mas já desviaram levemente para temas muito sérios, como os traumas de guerra. Em 2013, Walker decidiu explorar as questões do mundo real do transtorno de estresse pós-traumático (PTSD) e do trauma cerebral sofrido pelos soldados. Em uma tira do período, Zero é mostrado tendo pesadelos e dificuldade para dormir. Walker disse que fez isso para ajudar a aumentar a conscientização sobre os efeitos persistentes da guerra e suas sequelas em milhares de jovens que retornam das investidas militares no exterior.
Em 1992, uma escultura de bronze do Beetle Bayley foi instalada no campus da Universidade de Missouri, a escola em que Walker se formou em 1948. Depois de ser incentivado por professores sobre uma escultura, Walker decidiu modelá-la. A escultura do Recruta é semelhante a uma estátua famosa de Abraham Lincoln, com o personagem relaxando em uma mesa. Os turistas costumam sentar ao lado da mesa para fotos divertidas.
Após 50 anos de “serviço”, o Recruta Zero finalmente recebeu um pequeno reconhecimento de seus superiores. No ano 2000, o Pentágono convidou Mort Walker e três de seus personagens fantasiados para uma cerimônia, que homenageou o cartunista por seu trabalho no apoio aos militares.
Walker foi presenteado com a condecoração do Secretário do Exército pelo Distinto Serviço Civil, a maior homenagem civil do Exército. “Acho que finalmente o exército aprendeu a rir um pouco de si mesmo. Já não estão mais me banindo do Stars and Stripes como fizeram algumas vezes”, declarou.
No Brasil o Recruta Zero foi publicado pela Rio Grafia Editora (RGE) nos anos 1960, 70 e 80, com imenso sucesso. As tiras são até hoje exibidas nos Jornais O Estado de São Paulo e O Globo. Um desenho animado também distraiu as tardes da criançada durante os anos 1980.
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Imagens: reprodução