Jornalista e produtor conversou com O Cultura930 sobre sua saga por uma troca musical mais integrada entre Brasil-América Latina e novos projetos, que incluem um recém lançado tributo a Walter Franco
Conheci Leonardo Vinhas na época em que alugava um apartamento em um residencial art déco na área do baixo São Francisco, ainda incipiente como zona de efervescência boêmia, meados da década passada. Apareceu com Rubens K, músico e amigo de infância. O jovem havia acabado de se mandar de Taubaté, depois São Paulo, e pegava estrada com o coração aberto e uma vaga sensação de que um tango argentino lhe caía mesmo muito mais que um blues.
Década e meia depois, Leo manteve contato constante com o que há de melhor e pior em Curitiba. Frequentou os festivais da DeInverno, privava da amizade do pessoal da banda oaeoz, depois da Folhetim Urbano, e trazia de SP a referência em comum do grupo La Carne, de Osasco, uma espécie de bússola para aquele núcleo de criadores que se concentrava em uma casa azul no pacato bairro do Ahú, onde viviam os também jornalistas Adri Perin e Ivan Santos, cabeças da DeInverno Records. Já no período, escrevia crônicas e reportagens no cultuado site Scream&Yell, para o qual nunca deixou de colaborar.
Pouco tempo mais, Vinhas foi morar em Foz do Iguaçu, e cruzou América. Voltou a São Paulo. Enquanto trabalhava como redator, colunista, editor e repórter na editora de revistas de Roberto Justus, e publicava seu livro de contos “O Estuprador Deprimido e Outras Pessoas Comuns” (Redondezas, 2013) exercia uma relação atávica e apaixonada com a música produzida em todo continente americano. Nascia ali um certo “espírito de produtor”.
Já em 2015, vem à luz o primeiro produto deste período, a coletânea “Somos Todos Latinos”, com 16 artistas brasileiros regravando clássicos do idioma espanhol. Seguiram-se tributos a Paralamas, Alceu Valença, e o “Brasil Tambien Es Latino”, em que músicos do continente interpretam clássicos brasileiros. Agora, acaba de lançar o tributo a Walter Franco, “Um grito que se Espalha”. Conversei com Leonardo Vinhas por e-mail, direto de Jundiaí, onde o jornalista vive atualmente.
1. Já faz tempo que a gente toda, do meio ou não, se pergunta por que artistas da envergadura de Charlie Garcia, Attaque 77, Alberto Spinetta e Fito Paez, entre muitos outros, não são conhecidos no Brasil na mesma medida em que Herbert Vianna, Chico Buarque, Rita Lee, Titãs e tantos gigantes da música brasileira são reverenciados na Argentina, apenas para nos situarmos em nosso hermano mais representativo. Você já chegou a uma resposta pra esta pergunta frequente?
Vinhas – Uma resposta definitiva, não. Mas são muitas as hipóteses. Sempre tivemos esse desejo de “americanização”, no sentido “Estados Unidos” da coisa. Ou de europeização. Então, o que não fosse em inglês não colava muito por aqui, fosse no cinema ou na música. Até autores de literatura não eram muito aceitos por aqui, e ainda não são – ou você vai dizer que Jorge Luis Borges e Julio Cortázar são best sellers? Nossa abertura para isso é muito recente, porque por anos tratamos o estrangeiro dos países vizinhos como caricaturas: o paraguaio contrabandista, o argentino arrogante e futeboleiro, o uruguaio comedor de churrasco… Essas tolices de quem não conhece nada, se recusa a pensar e conhecer, e mesmo assim acha que manja muito de tudo, sabe? (risos). Mas já vejo pequenas mudanças, aqui e ali. Quer se goste ou não, até a onipresença do reggaeton está ajudando o brasileiro a se familiarizar com o idioma espanhol, coisa que nunca aconteceu. Mas de qualquer maneira, a gente ainda para nos estereótipos. A Shakira só virou megastar por aqui (e em outros países, claro) depois que “se americanizou”. Muita gente não lembra que ela começou como uma cantautora pop rock, de violão em punho, e não precisava fazer vídeos rebolantes. Mas nessa época, ela era um pop de segunda divisão por aqui, mercadologicamente falando. Somos tradicionalmente preconceituosos, é isso que quero dizer, mas acho que essa situação está mudando. Devagar, mas está.
E tem a questão mercadológica: as gravadoras preferiam investir nos brasileiros lá fora do que o contrário. Caetano, Chico Buarque, Paralamas, Vinicius de Moraes: esse pessoal ia fazer show lá fora, camelar mesmo, aceitava aparecer em tudo quanto é canto para formar mercado. Do lado de lá, isso não aconteceu muito, em alguns casos por falta de investimento, outros por vontade própria. Fito, Charly e Attaque, desses que você citou, até tentaram, bem como o Café Tacuba, para ficar em exemplos que resgato fácil da memória. Mas não colaram. Acho que, por aqui, os únicos que tiveram êxito, e ainda assim presos a um segmento, foram o Jorge Drexler e a Julieta Venegas, e atribuo muito desse bom caminho ao fato de terem sido apresentados ao público brasileiro por alguém que eles já conheciam – no caso, Moska e Marisa Monte, respectivamente.
2. Seu relacionamento com a música da América Latina é antigo. Muitos (meu exemplo) já o consideram como uma autoridade no assunto. Como começou e se desenvolveu esta relação do moço de Taubaté com os bons sons de todos os filhos de Bolívar?
Vinhas – Agradeço, mas acho que o que eu faço – junto com todo o trabalho – é mostrar mais a cara. Mas não existiria esse Leonardo Vinhas produtor sem gente como Fernando Rosa ou Luciano Balen. Fernando, o “Senhor F”, criou o festival El Mapa de Todos e há anos escreve sobre os latinos com muito conhecimento de causa. Balen é o criador do Festival Brasileiro de Música de Rua, que, apesar do nome, sempre abriu as portas para os latinos. Outros festivais também trazem esse acesso à música dos países vizinhos, mas Fernando e Balen têm a preocupação de apresentar essa música ao público de forma consciente, consistente e gradativa, além de serem pessoas generosas a ponto de compartilhar seus conhecimentos comigo em muitas ocasiões.
Dito isso, vamos “aos antes”, como diria o Analista de Bagé. Eu sempre adorei o idioma espanhol, mas não tinha acesso a muita música nesse idioma: morando em Taubaté, fim dos anos 80 e começo dos 90, internet não existia e MTV não pegava, sem revistas importadas ou programas de rádio… Ficava na curiosidade e no mistério. Eu acho que tinha uns 21 anos quando consegui comprar meu primeiro disco em espanhol, que foi o “Re”, do Café Tacuba – uma colega de trabalho trouxe da Argentina para mim. Eu tinha um amigo que gravava o “Gás Total” e o “Lado B”, ambos da MTV, em VHS. Ele me emprestou uns e ali conheci Mano Negra, Molotov, Los Straitjackets… Fui pirando mesmo, era tudo muito novo, em ritmo, letra, arranjo… Tudo! Virou um prazer específico, quase um fetiche, até eu ir morar em Foz do Iguaçu, em 2005. Fronteira, né? Tinha acesso a revistas, rádio, raríssimas lojas de discos, internet começando a pegar força… Eu trabalhava nos três países (Brasil, Argentina e Paraguai), convivia com todo tipo de gente, e fui me inteirando de política, cinema, culinária, história, arquitetura… Mas principalmente da música. Era um horizonte todo novo, para conhecer sem preconceitos, e eu fui sem medo. Por mais que parte dessa inocência tenha sido perdida, ainda conservo o olhar do novato, de quem está descobrindo, e esse é um dos maiores prazeres que tenho na vida: me surpreender com a criação musical de outros países.

3. Foi a partir do “Somos Todos Latinos” (perdão se há engano aqui) que você empreendeu produzir executivamente (e artisticamente, creio) este encontro da música brasileira com os países de língua castelhana. Você pode explicar como se deu todo contato? Baseado em quais critérios a curadoria caminhou?
Vinhas – Sim, o “Somos Todos Latinos” foi o primeiro disco que produzi, e já foi direto nessa onda. A curadoria levou em conta muitos fatores: o acesso que eu tinha aos músicos, o quanto eu sabia eles serem ligados a esse universo musical, e a disponibilidade deles em contribuir para um disco que não teria fins lucrativos (como também foram todos os que o seguiram, aliás). Baseado nesses três critérios, escolhi quem eu achava ser capaz de fazer um bom trabalho, e digo que, naquele disco, só um deles me frustrou (ok, dois deram para trás aos 45 do segundo tempo, mas isso é outro papo). Eu gosto muito daquele disco, do empenho enorme que todos tiveram, e não consigo destacar uma preferida. Muitos dos artistas que participaram eu conheci na estrada: a partir de 2013, com uma mudança grande na minha vida pessoal e profissional, passei a circular muito por festivais, e a aproximação com alguns artistas me deu coragem e inspiração para tentar esse projeto. A Bob ShuT, por exemplo, conheci durante o festival El Mapa de Todos, e mesmo sabendo que as influências maiores deles estavam no indie norte-americano, deu para levar uma ideia e sacar que eles curtiam o power pop em qualquer idioma, e foram eles mesmos que sugeriram gravar a canção “Ver en la Oscuridad”, do espanhol Xoel Lopez, que eu mesmo não conhecia. O Xoel adorou a versão, e a elogiou publicamente, assim como o argentino Edu Schmidt, que teve sua “El Fantasma” gravada pelo baiano André L.R. Mendes, e o uruguaio Jorge Drexler, cuja “La Edad del Cielo” virou uma porrada shoegazer nas mãos e na voz da carioca Vivian Benford. Esse disco me abriu portas com produtores, músicos e jornalistas do exterior, e até hoje recebo feedback de alguém que diz que começou a ouvir música em espanhol por causa do disco!

4. E “Um Grito que se Espalha”? Você mantém contato com o Walter Franco? Como tem sido o processo todo?
Vinhas – Essa pede uma resposta beeeem detalhada (risos). Apresentei o disco ao Walter antes mesmo de ele estar finalizado – não estava masterizado não tem a sequência definitiva de faixas. Até então, ele estava a par do tributo, e estava tranquilo quanto a isso, envolveu o biógrafo e sócio comercial dele, o jornalista Thales de Menezes, no processo, estava indo tudo bem. Mas na audição, ele encasquetou justo com a primeira música que apresentei, que foi a versão do La Carne para “Feito Gente”. Ele começou a ouvir, arregalou os olhos e os ouvidos (!) e falou: “esse aí sou eu!”. Passou um tempinho, e ele emendou: “é um Walter Franco psicótico!”. Cara, ele travou, nem prestou atenção nas duas músicas que se seguiram, e só relaxou quando ouviu a versão de “Dia do Criador” pela banda Consuelo, de Brasília.
A audição foi uma experiência… curiosa. Ele realmente defendia muito a gravação dele para boa parte das canções, tanto que elogiava as versões que mais se pareciam com a original. Isso me decepcionou, porque admito que eu esperava aquele espírito desafiador que o deixou conhecido, sabe? Por outro lado, ele também deu uma aula de sutilezas de composição que nunca vou esquecer. Ao fim, ele agradeceu pelo projeto, mas não pareceu impressionado. Só bem mais tarde que vi que ele divulgou o disco com carinho nas redes sociais. Mas desde essa audição, não tive qualquer retorno direto dele ou do Thales. Admito que foi uma experiência intensa, que chegou a pôr em xeque minha fé no disco e imediatamente depois me deu um gás louco para lançá-lo! (risos). E estou bem feliz com o resultado artístico, e também com o modo como o disco vem ganhando cada vez mais espaço.
5. Como você sente que é vista a produção brasileira de hoje lá fora? E, se depois de toda tua trajetória como produtor, você sente que o caminho inverso começa a reverter, ou trocando em miúdos: hoje o Brasil ouve mais a música da América Latina?
Vinhas – Excelente pergunta. No ano passado, lancei o disco “Brasil También Es Latino”, que reuniu 12 artistas dos países latino-americanos fazendo versões de canções brasileiras. Deixei o pessoal livre para escolher, e a esmagadora maioria foi fuçar no cancioneiro dos anos 70 e 80. Um jornalista do Uruguai não só notou isso, mas também me perguntou “por que você acha que a música brasileira não chega mais como chegava?”. A dúvida é legítima, mas não tem resposta única. Tem a ver com momentos históricos diferentes: hoje a imprensa cultural especializada é quase irrelevante, especialmente no Brasil, mas antes havia uma troca maior. Havia também a questão política, artistas que faziam canções veladas sobre governos ditatoriais podiam ser entendidos em qualquer canto, pois todos os países viviam situação semelhante. O mundo globalizado nos planificou, mas não nos uniu: pelo contrário, parece ter polarizado o individualismo, e a maioria foi se fechando. E também por essa globalização, já não somos mais “exóticos” para o estrangeiro, dá para saber muito sobre o Brasil em uma passada rápida pela internet. Na Argentina e no Uruguai, ainda há espaço: nomes como Arnaldo Antunes, Moska, Marisa Monte, fazem muitos shows por lá, em lugares grandes, e no circuito alternativo, bandas como Boogarins e Francisco el Hombre têm seu espaço nos “vecinos”. Mas de maneira geral, é uma combinação de fatores sociopolíticos com uma grande preguiça e inabilidade dos nossos músicos em fazer a música deles atravessar fronteiras.
6. Projetos para o futuro? O que anda fazendo o jornalista Leonardo Vinhas, para além do produtor?
Vinhas – Cara, já há uns anos meu trabalho principal é o de terapeuta complementar. Trabalho com medicina chinesa e massoterapia. Em paralelo, faço alguns trabalhos, mas é um misto de mercado difícil com pouca vontade de seguir em uma área tomada pelas mídias sociais e tecnologia móvel. Sei que elas fazem parte do mundo, que isso não tem volta, mas sei também que não preciso me forçar a produzir conteúdo para celular. Então, pego trabalhos que me interessam, seja do ponto de vista financeiro (a gente precisa pagar contas, sempre) ou do ponto de vista pessoal – quando dá para unir os dois, é lindo. Dois trabalhos que valem mencionar é que fui redator e pesquisador da terceira temporada do programa “Estação Roquenrôu”, que estreia no segundo semestre no Canal Brasil, e que estou armando um programa sobre música e viagens em parceria com uma produtora do Rio de Janeiro (e mais não posso dizer, porque tudo ainda é sigilo). Fora isso, escrevo sobre saúde para as revistas Bons Fluidos e Viva Saúde, além de manter, cada vez mais irregularmente, meus textos no Scream&Yell e na revista digital espanhola Zona de Obras. E sobre produções, vem mais uma neste ano. Mas não acho que falarei muito sobre ela ainda nesse momento. O que dá para dizer é que, se tudo correr como planejado, sai em novembro, e mantém essa proposta de integração latino-americana pela música.
Abaixo os links dos trabalhos produzidos por Leonardo Vinhas:
2015 – “Somos Todos Latinos” (com 16 artistas independentes brasileiros regravando temas pop e rock dos países de idioma espanhol)
2015 – “Caleidoscópio” * (em homenagem aos Paralamas do Sucesso)
2016 – “Ainda Há Coração”* (em tributo a Alceu Valença)
2016 – “Brasil Tambien Es Latino” (artistas latinos gravando canções brasileiras)
2017 – “Faixa Seis” * (lados B, sobras de estúdio, versões alternativas e canções nunca lançadas de artistas independentes)
2017 – “Sem Palavras” (versões instrumentais de canções emblemáticas do rock, pop e folk)
2018 – “Um Grito que se Espalha” * (em homenagem a Walter Franco)
– Os discos com * estão disponíveis também nas plataformas de streaming.
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Foto: divulgação