Thin Lizzy. O céu do hard rock


Rara sofisticação, originalidade e a personalidade carismática de Phil Lynott fizeram do grupo irlandês fonte de inspiração para futuras bandas e a personificação da música rock em seu país

A Irlanda e seu povo formam um país para, além de insular, realmente sui generis. Não que seus vizinhos escoceses, galeses ou os “detestáveis” ingleses também não o sejam. Mas no mapa das idiossincrasias os irlandeses ganham de longe.

Por exemplo: diz a história que os irlandeses inventaram o uísque. Reza a piada, entretanto, que os escoceses copiaram a ideia e por certo fizeram melhor proveito, conservando a bebida e tornando-a seu maior símbolo nacional. E os irlandeses? Beberam tudo.

Não é lenda. Os irlandeses são de fato beberrões e também brigões. Deram ao mundo Oscar Wilde, James Joyce, George Bernard Shaw, Jameson (o uísque), Pogues, Van Morrison, U2, Guiness (a cerveja), muitas canções populares e…. Phil Lynott.

Phillip Parris Lynott na verdade nasceu em West Bromwich, no meio-oeste inglês. Filho ilegítimo de um caso entre sua mãe irlandesa Philomena Lynott e o pai, um marinheiro brasileiro chamado Cecil Parris. Era 1949.

Aos quatro anos Philomena o enviou para Dublin para morar com sua avó enquanto permaneceu na Inglaterra, fixada em Manchester, onde administrou um pequeno hotel.  Ela descreveu que sua mãe — Sarah Lynott — quase desmaiou quando se deparou com seu netinho, um neném preto. Na verdade, o pequeno Phil era mestiço, dado que seu pai marinheiro era negro. No entanto, Phil Lynott cresceu e viveu irlandês. Como poucos.

Ele cresceria em Dublin e viria a conhecer Brian Downey, aos 9 anos de idade. Phil formou o Orphanage, primeira banda, que tocava uns covers de Beatles e Stones, como toda cena irlandesa do período.

Em 1969, um personagem de história em quadrinhos popular inspirou o nome Thin Lizzy, grupo que Phil Lynott e Brian Downey montaram para tocar suas próprias canções. Todas basicamente compostas por Lynott, que assumiria o baixo e vocal, e Downey a bateria. A eles juntou-se Eric Bell, guitarrista. Formou também no começo o lendário Gary Moore, parceiro e amigo de Lynott, que pertenceria à banda em formações futuras, esporádica e marcantemente. Essa combinação de um baixista fazendo o ritmo em base bastante rudimentar e cantando, com dois guitarristas sempre afiados mais uma bateria clássica do rock pesado seria a marca registrada do grupo.

Em 1970 Phil namorava uma garota chamada Gale Claydon. Ela declarou ao escritor e jornalista Mick Wall que seu então namorado e seus amigos “eram pessoas simples, mas Phil era uma personalidade realmente complexa”. Gale estava com Phil quando os rapazes se mudaram para Londres e assinaram com a Decca Records em 1970. Lá, gravaram os três primeiros álbuns, Thin Lizzy (1971), Shades of a Blue Orphanage (1972) e Vagabonds of the Western World (1973). Nenhum deles foi sucesso, mas todos já apontavam para um hard rock delicado e virtuoso, com influências de folk e blues, hard rock com um peso na medida certa, que desenharia a estética do Thin Lizzy. Tudo parece normal.

Mas não é. A história de Phil Lynott — o homem por trás das canções — está longe de ser simples. Gale declara que “acho que Phil nunca confiou em ninguém durante toda vida”.  A garota viria a ser produtora de tevê nos 80’s, e manteve contato com o ex-namorado durante toda sua trajetória. “Mas quando você olha para a educação dele, você entende o porquê. Porque ele estava tão inseguro, tão zangado e tão determinado a fazer tudo aquilo. Ele simplesmente tinha que fazer. Ou morrer tentando”.

A história pregressa de sua mãe — solteira e alvo de todo preconceito que uma mulher poderia sofrer na época — era certamente o maior fantasma que assolou Lynott por anos. Ser o único garoto negro da escola por exemplo, essas coisas.

“Eu não era exatamente um pária”, disse ele certa vez. “Mas eu sabia que era o único por perto como eu. Eu não me sentia à vontade para esquecer tudo isso”.

Brian Downey conta que “Phil era perseguido, chamado nigger. Mas ele sabia lidar com a situação. Ele costumava ir ao clube de boxe. Então, se ele tinha essa reputação, as pessoas o deixariam em paz”.

Tímido, de fala mansa, devorava livros de história, adorava as baladas folclóricas do universo celta e era leitor voraz dos poetas de Dublin do século 19 como Clarence Mangan.

Scott Gorham, guitarrista do Thin Lizzy em 1974 — as formações foram diversas — dizia que “para ouvir Phil falar, a Irlanda era o melhor lugar do mundo. Ele sabia todas as datas e nomes e quais batalhas históricas que aconteceram”. A Irlanda era de fato uma paixão para o garoto negro nascido na Inglaterra e radicado compulsoriamente em Dublin.

“Ele também era um filho-da-puta engraçado”, diz Brian Downey. “Ele tinha aquele jeito irlandês de contar uma história, sem costura”. Essa fala macia que Phil Lynott levaria para sua performance marcante na banda, também era a chave de um imenso sucesso que faria com as mulheres. Phil Lynott não fugiu ao estereótipo roqueiro dos anos 1970. Sexo, drogas e rock’n roll.

O Thin Lizzy pegou a estrada, rodando toda Grã Bretanha. A mãe de Phil costumava ajudar nas despesas dessas viagens, sempre dando algum trocado ao filho todas as vezes que a van do grupo passava por Manchester, onde obviamente se hospedava no hotel de Philomena.

Thin Lizzy é a personificação do rock pesado na Irlanda, e continua a influenciar artistas em todo o mundo até hoje. Phil Lynott está enraizado na história. Abriram o caminho para a música rock irlandesa nos 70’s, pisando o tapete manchado do rock’n roll, realizando sonoridade muito peculiar enquanto ainda se inspiravam em elementos da cultura irlandesa, como a música tradicional. As letras de Lynott, que comumente descreviam experiências da classe trabalhadora, eram a cereja de um bolo bastante explosivo.

Em 1976 o grupo realiza seu grande álbum, enfim. Jailbreak, pela Vertigo Records, com a dupla de guitarristas que marcaria definitivamente a história: Scott Gorham e Brian Robertson.

As dobradas de guitarra — basicamente realizando a mesma linha, mas alternando oitavas e terças — fariam grande diferença, conferindo estilo e influenciariam duplas de guitarristas para sempre. Ouça Thin Lizzy e veja se você não reconhece algo ali que viria a estar (com mais velocidade) no Iron Maiden, por exemplo.

Jailbreak explodiu com a faixa Boys are Back in Town e levou o grupo ao primeiríssimo time do rock mundial. Vieram turnês intermináveis e tudo o que tinha direito veio junto no pacote.

Pelo início dos 1980’s, já com a formação da banda alterada diversas vezes, mas sempre impecável, Phil Lynott já apresentava problemas com uso abusivo de álcool e drogas, especialmente heroína. Veio a morrer em 1986. Mas nunca foi esquecido.

O escritor e músico Renato Quege, um irish fan por natureza, declara: “a Irlanda respeita seus artistas. Os dublinenses veneram seus filhos, mesmo os adotivos, como The Edge, Adam Clayton, Mike Scott, etc. Contudo, têm um enorme carinho, talvez por ter vivido tão pouco, pelo Philip Parris Lynott. Todos os grandes escritores de lá foram homenageados com estátuas. O Phil também. E não num recôndito apartado. Lá está ele, com seu contrabaixo, lindo e resoluto, na Harry Street, a meia quadra da Grafton, no coração de Dublin”.

Uma exposição permanente no The Irish Rock’n Roll Museum Experience celebra a mais influente banda da Irlanda, em um ambiente em que eles próprios se sentiriam completamente em casa, na Curved Street em Dublin.  Ali foi o Estúdio Apolo, o lugar onde Phil Lynott gravou algumas de suas últimas músicas antes de sua morte prematura. “Isso o torna o local histórico perfeito para nossa exposição Thin Lizzy”, entrega o museu em seu site.

Thin Lizzy é o fino. O céu do hard rock, a despeito do inferno vivido por seu maior poeta.

Ouça. Leia. Assista:

Jailbreak – by Thin Lizzy – 1976

Irish Rock’n Roll Museum Experience – Dublin

Birth of a legend: The true story of Phil Lynott’s early years – por Mick Wall

Imagens: reprodução