Espetáculo de 1977 trouxe novos horizontes à dramaturgia e encenação nacionais, revelou um punhado de atores/autores, e refez o imaginário da juventude
Palco escuro. Teatro Dulcina, Cinelândia, Rio de Janeiro, abril de 1977. A luz acende e adentra o palco um grupo de atores cantando à capela o inocente iê-iê-iê Exército do Surf, gravada por Wanderléia, uma espécie de reminiscência adolescente para um coletivo cuja média de idade já ultrapassava os vinte anos. A canção fora o auge da Jovem Guarda de Roberto e Erasmo Carlos, há coisa de dez anos passados.
No palco vazio, duas garotas preparam-se para uma festa. Na conversa, o assunto é “problemas de família”. O tema vai dar o tom em todo o espetáculo que segue. Seguido ao breve diálogo, a frase “quem vem?” remete ao som de uma campainha. É uma espécie de chamado para a cena seguinte, que vai se repetir durante toda a peça, estabelecendo a expectativa acerca “do que virá”, o futuro, a dúvida perene na mente e no coração pulsante da juventude que vê chegar a vida adulta como um martelo que não para de bater, querendo acordar a gente toda de um sonho, que ainda não acabou.
A sonoplastia é baseada em vozes. As vozes dos atores em cena. Algo como “agora é contigo, meu chapa, você está no comando”. Não há marcas aparentes. O espaço e ação dramática são conduzidos pelo movimento corporal da trupe.
A peça que estreava no outono, arrefecendo o calor de mais um verão carioca, é Trate-me Leão, a terceira montagem do grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone. Novidade: uma criação coletiva, com redação final e direção de Hamilton Vaz Pereira. E os atores que traziam o frescor ao novíssimo teatro, feito “por e para os jovens” — outra novidade: Evandro Mesquita, Regina Casé, José Paulo Pessoa, Luiz Fernando Guimarães, Patrícia Travassos, Perfeito Fortuna, Nina de Pádua, Fábio Junqueira. Nomes que certamente — hoje — você já ouviu falar.
Se em seus espetáculos anteriores (O Inspetor Geral, 1974, e Ubu Rei, 1975), o Asdrúbal já era pura irreverência — adotando como marca registrada este elemento, sua “arte maior”, sua estética —, em Trate-me Leão o grupo foca a vida cotidiana da emergente geração que completava 20 anos naquela década de chumbo e hedonismo, os anos 1970. Os jovens do Asdrúbal saqueiam a cena teatral com o combalido e maldito “desbunde”, adotando questões como sexo, drogas, rock e o fazer artístico. O Asdrúbal propõe — e eis aqui uma postura política, queiram ou não — a “luta pela alegria” como norte.
A criação do texto e principalmente sua forma de encená-lo partiu de investigação que tomou por princípio suas próprias experiências, de garotos e garotas da zona sul carioca. É quase impossível separar do artista o surfista que há em Evandro Mesquita, ou o sacana piadista do fundão da sala de aula que há em Luiz Fernando Guimarães, bem como a cocotinha libertária bronzeada de sol colada aos personagens de Patrícia Travassos e Regina Casé, frequentadoras contumazes das Dunas da Gal.
A opção pela criação coletiva não se dava apenas no texto, mas em toda a produção. A distribuição de tarefas era natural. Desde a vaquinha para arrecadação de recursos promovida pelo próprio grupo, até a feição de desenhos e cartazes (ilustrações por Evandro), bem como sua anárquica divulgação.
Dividido em oito blocos de aproximadamente 20 minutos, com cada ator interpretando oito personagens, cujos nomes são trocados volta e meia a depender do bloco — Hamilton interpreta “Perfeito”, bem como Luiz Fernando faz um certo “Evandro” em um dos quadros — que abordam apartamento, casa, família, primeiro emprego, profissão, escritório, morte (um personagem de Perfeito Fortuna morre em um buraco do metrô, em construção na Ipanema da época), escola, natureza, praia, vida em comunidade, e por aí vai. Oito blocos, oito atores (nove com o diretor Hamilton), oito personagens cada. Oito é o número do infinito. Infinitas eram as possibilidades.
Ainda em fase de ensaio, a peça chegou a ser censurada. No tradicional drible aos censores, bastante comum à época, especialmente no Rio, o grupo foi adequando o texto, em pequenas modificações, que ante a aparente inocência, acabou aprovado pelos sisudos funcionários da Censura Federal. Foi à cena praticamente sem cortes.
Trate-me Leão ficou em cartaz durante o segundo semestre de 1977, mais o ano inteiro de 1978. Não contou com patrocínio privado ou auxílio governamental de qualquer natureza. Apenas bilheteria. Teve sua última apresentação no final de 78, na boate Noites Cariocas de Nelson Motta, no Morro da Urca. Transformou o cenário teatral e cultural do país.
O termo “Asdrúbal trouxe o trombone” era uma senha que o avô de Regina Casé, o radialista Geraldo Casé, adotara para detectar a presença de pessoas chatas e insuportáveis. Toda vez que alguma destas surgia, ele e a neta tinham o código na ponta da língua: “Xi, Asdrúbal trouxe o trombone”, ao qual dava tempo de saírem de fininho de festas ou reuniões xaropes.
O grupo foi fundado por Regina e Hamilton em 1972, estreando com o O Inspetor Geral em 1974. Após o sucesso de Trate-me Leão, o grupo montou ainda Aquela Coisa Toda (1980) e A Farra da Terra (1983).
A exemplo dos personagens da peça, todos os integrantes do Asdrúbal traçaram seus próprios rumos, e fizeram história no teatro, cinema, música e televisão do país, nos anos que se seguiram. Evandro montou a Blitz, Luiz Fernando e Regina integraram o TV Pirata, entre outros, Patrícia escreveu roteiros e criou o seriado Armação Ilimitada para a televisão, além de ter dirigido shows da banda de Evandro. Perfeito Fortuna criou e dirigiu a casa de espetáculos multimídia Circo Voador, mudando os rumos do rock brasileiro. Hamilton segue dirigindo e tendo ideias.
Todos estão por aí. E a pergunta continua: “quem vem?”.
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Ouça. Leia Assista:
Trate-me Leão – mini documentário.
Asdrúbal Trouxe o Trombone – série documentário, canal Viva.
Trate-me Leão – livro.
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Imagens: reprodução